O que a Forbes poderia ter dito, mas não disse.
#3 Um pequeno resumo sobre a essência do Movimento FIRE, sob a minha ótica.
Pensei muito se faria esse artigo ou não. O principal motivo que me inibia de fazê-lo é que poderia soar ofensivo, sendo que, na realidade, eu admiro a maior parte das matérias e textos publicados pela Forbes. Seria mais fácil (e talvez prudente) falar sobre um outro assunto qualquer, mas não consegui. Uma das maiores belezas do mundo moderno é que qualquer ser humano pode ter voz.
Mas, como sempre falo, liberdade requer responsabilidade. Portanto, antes de mais nada, quero deixar claro que meu intuito aqui não é o confronto. Muito pelo contrário. Quero justamente usar este espaço para mostrar uma outra visão sobre o tema. E o principal: trazer conceitos de educação financeira que sejam úteis para melhorar a vida das pessoas (e não o inverso).
Apenas para te situar: a Forbes fez uma matéria sobre o Movimento FIRE que, na minha opinião, foi um tanto quanto enviesada e cheia de julgamentos infelizes. Dito isso, trarei alguns trechos para cá, no intuito de passar o meu ponto de vista. Comecemos pelo título: “Quiet quitting já era. É a vez do 'trabalhar muito e se aposentar cedo'”
Ao colocar o movimento FIRE junto do Quiet Quitting em tom de ironia, já temos o cenário perfeito para a indução ao erro. O título faz o leitor pensar que são pessoas que necessariamente odeiam os seus empregos e querem sair dali o mais rápido possível. Não é bem assim… E a foto utilizada para ilustrar a matéria? Sem comentários.
Mais adiante, a matéria alimenta essa mensagem ao dizer que “A mentalidade é focar incansavelmente em ficar rico rapidamente. O fim do jogo é se aposentar jovem e rico.”
Mas antes de falar um pouco sobre a minha visão (e tangibilizá-la com a minha própria trajetória), permita-me trazer mais um trecho que é fundamental para entender o que me motivou a escrever este artigo.
“É mais fácil falar do que fazer. A tropa do fatFIRE está se estressando muito no curto prazo, esperando ser recompensada financeiramente mais tarde. Mesmo que se aposentem cedo, podem acabar se sentindo entediados e solitários.”
Eita. Li, respirei fundo e me senti intimada a trazer a minha própria história para contrapor essa matéria (pelo menos neste pequeno espaço da internet que me cabe).
Primeiro que “ficar rico rapidamente” não combina com Independência Financeira (nem mesmo a antecipada). Estamos falando de, no mínimoooo, 15 anos para quem possui uma capacidade de poupança muito alta (na casa dos 50%, pelo menos). Portanto, troque a expressão “ficar rico rapidamente” por “altas taxas de poupança durante um longo período de anos” e, aí sim, teremos a representação da essência do movimento. Essas taxas de poupança soaram muito altas para você? Ótimo. É exatamente por esse motivo que não acho que a aposentadoria antecipada seja a solução para todo mundo. É preciso ter um contexto de vida muito particular para conseguir alcançá-la de forma “antecipada”. Defender isso como a “solução mágica”, ainda mais num país como o Brasil, seria completamente imprudente (mas isso não exime ninguém de buscar algum grau de independência financeira, já falamos sobre isso – e o porquê – nos dois artigos anteriores).
Eu não tenho dúvidas que ao procurar pelo Movimento FIRE você vai se deparar com pessoas amarguradas com a vida que se jogaram de cabeça em seus trabalhos de alta renda para tentar atingir a IF o mais rápido possível. Sempre teremos casos de todos os tipos. Mas não foi isso que a MINHA lente enxergou ao se deparar com o movimento.
A matéria esqueceu de abordar o fundamental: ser FIRE é sobre não depender de um trabalho! É sobre buscar ter a liberdade, mas não a obrigação, de aposentar-se mais cedo!
Se eu fosse colocar o meu histórico profissional em um gráfico, ele seria mais ou menos assim:
Para não complicar demais, coloquei somente a minha trajetória profissional “padrão”, ou seja, o meu emprego carteira assinada (apesar dos @jornada_FIRE já ter assumido um papel importante em termos profissionais para mim).
Agora vamos interpretar esse gráfico para que não sobrem dúvidas. Logo no início da minha trajetória profissional tive uma promoção que mais que dobrou o meu salário (salário esse que já era bom). Sim, eu trabalhava muito. Muito mesmo. E gostava. Isso foi fundamental nessa jornada para a IF. Mas reparem o que aconteceu logo depois: tive 2 convites para uma promoção que novamente dobraria o meu salário. E o que eu fiz? Neguei. Claro que fiz isso com toda a educação e jogo de cintura do mundo. Era um convite super tentador em termos financeiros (me colocaria num patamar que nunca havia imaginado), mas eu tinha muita clareza que era um trabalho que não estava adequado para mim (era uma função que não me traria realização profissional, teria que praticamente viver para o trabalho e, o mais importante, confrontava com alguns valores pessoais que eram importantes para mim). Não consigo colocar a minha vida pessoal nesse gráfico, mas ao longo desses anos eu casei, viajei muitoooo, corri uma maratona, pedalei o circuito olímpico, fiz novos amigos (mantendo os antigos), me tornei mãe.
Ué... Mas ser FatFIRE não é “focar incansavelmente em ficar rico rapidamente”, segundo a matéria? Hum... Se fosse isso, meu gráfico teria sido bem diferente, não acha?
Aliás, permita-me explicar o que o termo “fat” quer dizer, pois não é bem o que colocaram na matéria. FatFIRE é quem quer atingir a IF, mas sem ter que se limitar a uma vida muito frugal. E o que tem de errado com isso? NA-DA. Inclusive, me identifico. Por mais essencialista que eu seja, gosto de muitas coisas na vida que envolvem uma boa quantia de dinheiro (ex: viajar com conforto), além de outras que ainda quero realizar (ex: passar temporadas morando fora sem perrengues). E é exatamente por isso que ainda continuo poupando e investindo. O eterno conciliar presente e futuro. Só para vocês saberem, existem diversas terminologias para o mundo FIRE (fat, lean, coast…), mas não vou abordá-las aqui.
Explicação feita, voltemos ao gráfico. A maior linha preta ao topo foi simplificada, mas, obviamente, fiz alguns movimentos laterais de carreira para atuar em temas que entendia fazer sentido naquele dado momento. Seria praticamente impossível passar anos a fio fazendo a mesma coisa (pelo menos para mim). Larguei minha função no momento em que a empresa queria me inscrever em programas de sucessão internos para duas diferentes vagas. Aqui não foram convites expressos e nem trariam um aumento substancial. Só que nesse ponto, eu já tinha clareza que queria desenvolver um projeto paralelo e, me conhecendo, não conseguiria mais colocar a mesma energia de antes - o que dirá aumentar - no meu emprego “primário”. Junto a isso, a maternidade tornaria praticamente impossível conciliar tantos papéis ao mesmo tempo e manter a minha saúde física e mental. Foi aí que encerrei um grande ciclo: larguei minha função comissionada e, na sequência, reduzi minha carga horária. O impacto salarial dessa decisão conjunta foi muito grande. Se enriquecer rápido fosse a minha prioridade, definitivamente não teria feito isso (e tampouco teria recusado convites).
A matéria está certa ao dizer que “É mais fácil falar do que fazer”. Exatamente por isso, trago aqui o meu exemplo. O exemplo de quem fez e já alcançou a IF. Não vi uma única entrevista na reportagem com uma pessoa real. A internet está cheia de pessoas escondidas em avatares.
Entendo que se expor requer coragem e não julgo quem não quer aparecer. Compreendo perfeitamente os motivos, a começar pelo receio dos julgamentos alheios. Mas quando estamos falando de uma matéria num veículo de grande circulação, o mínimo que se espera é um pouco mais de cuidado com as fontes utilizadas e, se não for pedir muito, diferentes visões sobre o assunto.
A graça do movimento FIRE para mim não foi “esperar ser recompensada financeiramente mais tarde”. Minhas recompensas vieram gradualmente ao longo de toda a jornada, conseguindo conciliar o presente sem negligenciar o futuro.
Quanto a me sentir “entediada e solitária”, por vezes, o que eu mais sinto falta na minha vida é justamente do tédio! Quem sabe um dia eu chegue lá, ando me esforçando para isso. Não, isso não é uma ironia. É uma vontade real e uma grande dificuldade para mim. Solitária, de fato, espero não ser. Ficarei atenta com a dica da matéria. Tá, isso foi uma ironia.
Agora vamos analisar mais um trecho: “O futuro é incerto com inflação descontrolada, altas taxas de juros, uma possível recessão no horizonte e turbulência geopolítica.”
Sem dúvidas o futuro é incerto. Não existe Independência Financeira sem adoção de premissas. Inclusive, no movimento FIRE existe uma premissa muito comum que é a Taxa dos 4%. Mas vou te contar um segredo: muitos educadores e planejadores financeiros famosos também a utilizam . Podem deixar que vou abordar esse tema em outro artigo.
O fato do futuro ser incerto não quer dizer muita coisa... É para fazer o quê então? Esperar pela aposentadoria do INSS? Esperar pela idade padrão que todos nós sabemos que vai mudar sem aprender a fazer o dinheiro trabalhar para gente? Boa sorte para quem tem essa coragem! Ademais, se a inflação estiver descontrolada pode ter certeza que quem passou décadas investindo e atingiu a IF saberá, melhor do que ninguém, como lidar com ela. Essa pessoa já está preocupada com a inflação desde sempre (não estou falando aqui de lunáticos, mas de sim de quem encara a IF com seriedade). A mesma lógica serve para períodos de recessão e turbulência. A fragilidade de uma recessão não seria muito maior para quem depende exclusivamente do emprego para bancar o seu padrão de vida?
Agora o último trecho que gostaria de comentar:
(...) “A desvantagem de ficar rico rapidamente: se as coisas piorarem, talvez você precise voltar ao mercado de trabalho. Pode ser desafiador, já que você estará fora do mercado de trabalho há vários anos, suas habilidades podem ter atrofiado e você não acompanhou os novos avanços. Entrevistadores e gerentes de contratação podem desconfiar que você logo desistirá quando recuperar o dinheiro e decidir desistir do posto.”
Quanto ao desafio de voltar ao mercado de trabalho, é verdade. Assim como é verdade que o profissional que não se atualizar ficará dispensável (não existe estabilidade, nem mesmo na esfera pública - acreditar nisso é uma ilusão). E é exatamente esse ponto que acho interessante no mundo FIRE. É muito comum ver pessoas que atingiram a IF recebendo propostas para voltarem ao mercado. Acabam negando, mesmo que as propostas sejam atrativas, porque “sem querer” acabaram encontrando outras atividades profissionais que trazem maior propósito para as suas vidas. E quando o trabalho vira uma paixão sem ter o peso de pagar as contas, não é raro surgirem negócios saudáveis mesmo quando a intenção inicial era... parar de trabalhar!
Mas, se esse não for o caso e, na piorrrrrr das hipóteses, vier um cenário apocalíptico que arruíne a renda passiva, eu realmente acredito que a pessoa que alcança a IF teria uma capacidade muito grande de se reinventar profissionalmente (aqui falo de pessoas que tiveram planos sólidos e o encararam com seriedade, não tô falando dos lunáticos que vemos aos montes na internet, ok?). FIREs não costumam “temer” o trabalho e possuem uma habilidade, quase que nata, de aprender a aprender o que for preciso...
Agora, o trecho final a ser comentado porque este artigo já está ficando muito longo:
“Com sua renda disponível, eles usaram os recursos para investir nos mercados de ações ou criptomoedas, construir negócios e ter algumas agitações paralelas.”
Não, eu não investi em criptomoedas. E aqui escorre uma lágrima, pois se tivesse feito lá no início estaria muito satisfeita (infelizmente, na época não entendia o papel de um investimento convexo dentro de uma carteira). Se bem que... hum, talvez tenha sido melhor assim. Não teria segurado tanta volatilidade na época e nem mantido na proporção adequada para mim porque não tinha a maturidade que tenho hoje. Investir em ações diretamente? Até estudei e tentei, não funcionou para mim. Quando o assunto é renda variável prefiro ETFs e/ou fundos de gestão ativa (sim, acho que dá para ter os dois convivendo em harmonia, cada qual com a sua função). Mas o que eu gosto mesmo, pasmem, é a Renda Fixa. Já “agitações paralelas” deve ser algum termo da moda que eu perdi, mas até onde eu sei, não me enquadro também.
Em resumo: meus investimentos sempre foram um tanto quanto “boring”. Foco nos aportes, invisto e deixo o tempo fazer a parte dele. Se desapontei alguém, peço desculpas. Definitivamente isso não é uma recomendação de como você deve fazer com a sua vida (não acredito em recomendações de carteira).
Após ter lido este meu texto gigantesco você pode estar aí pensando “isso só vale porque ela é concursada”. Bem, nesse ponto não tenho o que comentar da matéria porque, segundo a própria: “Essas pessoas tendem a trabalhar em grandes empresas de tecnologia, escritórios de advocacia, são fundadores de startups e aqueles cujas ocupações têm pacotes de remuneração generosos e opções de ações.” Acredite em mim, este universo é bem amplo! Inclusive, meu marido é do mercado privado e nossas carreiras caminharam lado a lado, mesmo em atuações completamente diferentes. Até mesmo a parte de “recusar convites irrecusáveis” (e lidar com o impacto disso) também aconteceu para ele.
Se você teve a paciência de ler tudo até aqui, espero que tenha conseguido demonstrar a essência do movimento, através do meu próprio exemplo, e despertado o interesse para o que realmente importa: tomar as rédeas da própria vida, conquistar algum grau de Independência Financeira e não depender somente do seu salário. Saúde financeira, saúde física e saúde mental. As 3 importam e a jornada nunca termina. Até a próxima!
Que bom que eu li seu artigo antes de ler a matéria da Forbes, rs.
Adorei os pontos que você destacou. A foto é realmente patética.
Mas quanto ao tédio, é impressionante como a nossa sociedade ainda relaciona qualidade de vida com manter-se ocupado. Enquanto a medicina está gritando há anos que stress é a principal causa de doenças.
É difícil explicar conceitos novos. Que riqueza não é ter renda alta, que quem gasta muito pouco tem, que aposentar cedo não significa parar de trabalhar.
Mas já estamos fazendo a nossa parte! Muito legal encontrar alguém que também está trabalhando para divulgar esses conceitos!